Coexistir ?




Tudo começou quando eu comecei a pensar sobre diferenças religiosas entre um casal.

Suponhamos que casem-se ou unam-se, um protestante e um espírita, ou um católico e um budista, whatever. Será que seria possível, sendo ambos praticantes de suas respectivas, e distintas, crenças, seguirem juntos prosperando, felizes, bem, mesmo com todas as diferenças que isto destacaria? A resposta automática que pulou em minha mente foi "é claro que sim!", com ênfase. E então, logo em seguida, fui chamada à atenção, para o fato de que é mais fácil - será? - quando um dos dois não é praticante convicto de nada - por "nada" entenda uma religião específica, conhecida e difundida em nossa cultura - que seria o meu caso. Isto quer dizer que, provavelmente, para mim é fácil falar. Ou talvez não. (Acho que seria perfeitamente possível que a discordância passasse a ser, então, o fato de um dos dois não haver assumido uma religião "registrada" no catálogo humanóide das religiões praticáveis. Humanóides não consideram fé no Divino, só, sem pedigree, como religião.)

Mas voltemos. Meu argumento era simples: tratando-se de duas pessoas maduras, dispostas, compreensivas, tolerantes e racionais, e isto é uma hipótese, não uma afirmação; o que seria mais natural do que , face a qualquer , eu disse qualquer diferença, onde a diferença religiosa não só cabe, como acomoda-se perfeitamente, estas pessoas se pusessem uma, frente a outra, de maneira aberta e generosa, prontas a falar e a ouvir, ávidas por buscar o entendimento e até a ampliação de seu conhecimento - supus que se falasse de pessoas que acreditam se amar, mas vale o princípio mesmo que não fosse - e diante deste momento de oposição trabalhassem pelo bem comum e maior dentro da relação? Sim, isto significaria ceder, mas muito mais, significaria rever conceitos e pré-conceitos, dogmas e linhas de crença muito profundas, talvez totalmente enraizadas, às quais jamais tenha cabido antes qualquer questionamento. Mas a coisa ainda vai além. Não se trata nem mesmo de questionar as próprias crenças e conceitos. De verdade, não se trata. Se trata apenas para abrir uma porta, talvez uma pequena janela, à verdade do outro, admitindo que a verdade que carregamos conosco está distante de ser a única.

Mas é quase divertido usar esta palavra "admitir". Frenquentemente ela se coloca entre nós e o passo seguinte, e frequentemente seguimos pela vida usando-a em inúmeras situações, nos congratulando por nossa larga habilidade em admitir, aceitar, respeitar. E quão longe estamos de realmente fazê-lo, ou ao menos, compreender que não o fazemos. Admitir , no meu pequeno dicionário amoroso, quer dizer reconhecer. E quando reconheço algo, eu aceito aquilo como verdade. Ao menos, assim visualizo toda esta celeuma. Fazermo-nos de reconhecidos sem nos imbutir da nova verdade recém-descoberta, é tão díspar quanto concordar que realmente a chuva cessou, mas sair de capa impermeável e guarda-chuva.

Quando aberta que seja, uma fresta, à outra verdade, creio que o que se sucede é uma mudança drástica de perspectiva. Isto não seria problema algum, ao contrário, se junto desta mudança não estivéssemos arriscados a ver chegar também, o questionamento, agora sim, evitado antes. A mim isto não parece tão dramático se estamos falando de crença religiosa. Mas tão natural quando seria para mim um questionamento de dogmas, impraticável seria para alguém com certezas mais arraigadas neste sentido, imagino. A mim talvez fosse mais delicado falar de outras verdades. E quem é que está um pingo a fim de entrar em contato com perturbações que lhe contrariem?

E neste ciclo, já não sei se virtuoso ou vicioso, a roda gira até chegar novamente no início. Não se trata de questionar - embora o questionamento possa sim, vir, e então ocorrerá de lidar com ele - , mas de reconhecer. Será que existe alguma outra verdade absoluta que não a individualidade pessoalíssima de cada um? E sim, nesta pergunta levei em consideração até diferenças tão profundas quanto as culturais entre oriente e ocidente.

É interessante pensar num revez para esta situação. Imagine então, que o casal não é religioso praticante (sim, porque existe, sempre ouço falar, deste ou daquele religioso "não praticante", embora eu não saiba que raios é isto). Seria irreal ou tolo imaginar que este par possa ter desavenças colossais por conta da cidade em que vão viver, do tipo de piso colocado na cozinha, da escola onde vão estudar os filhos, das amizades de um ou outro, dos defeitos irritantes e perpétuos de cada um, da linha de dieta seguida na casa, ou de quem tem razão sobre a última discussão cujos argumentos nunca mudam, apenas trocam de maquiagem? Ah, a razão, este portal para um universo paralelo onde ninguém é convidado a viver mas todos disputam a passagem barbaramente. Acho que é justo afirmar agora que, excluindo a religião e suas verdades absolutas, ainda sobrariam infinitos bons motivos para que uma briga nunca acabasse entre qualquer casal, tão logo esta seja a sua escolha.

O intrigante em pegar a religião para cristo, com o perdão do péssimo trocadilho, é que supostamente, seria ela que deveria nos nutrir o espírito e prepará-lo para o amor, respeito e tolerância. Esta última também, uma grande religião, da qual todos nós poderíamos fazer parte. E esta mesma, aquela que , de maneira geral, toda religião apregoa.

Na tolerância já não sinto mais a necessidade de subjugar o outro, ou ser subjugado por ele. Acontece que, se toleramos as diferenças um do outro, eu admito - reconheço - que a verdade alheia é tão possível quanto a minha. E automaticamente, o conflito se esvai. Isto é, se pudermos apenas nos respeitar os pontos de vista, ao invés de ter de convencer quem quer que seja, de qualquer coisa.

E aí vem a pegadinha. Minha tolerância, eu reservo aos meus iguais, àqueles que dividem comigo valores e opiniões. E com isto, deixo pendurada a pergunta: que estou tolerando, então?

Comentários

Postagens mais visitadas